novembro 29, 2001

"Certas pessoas têm a alma grande feito caminhão de mudança, ampla feito hangar de avião. E ali vão armazenando as coisas da vida, com a suave e discreta dúvida dos eternos curiosos, com a delicada persistência dos que acreditam.

Certas pessoas vivem os desafios sem perder a capacidade de assombro. Mergulham na vida para abastecer a alma, e depois devolvem à vida as coisas tomadas nesse mergulho. Registram as imagens do cotidiano com um olho posto no passado e o outro, no futuro. Como quem diz: "um olho sempre a boiar, outro que agita.

Certas pessoas se debruçam sobre o mundo e remoem, em suas próprias angústias, as angústias de seu tempo, de sua gente.

Certas pessoas passam pela vida deixando abertas trilhas e veredas para que a vida passe por elas.

Certas pessoas viajam pelo tempo levando na bagagem a dúvida afiada, profunda e fecunda: serão as lembranças algo que a gente tem, ou algo que a gente perdeu?

Certas pessoas têm uma espécie de defesa contra os desgastes que a vida vai provocando enquanto passa. Só as pessoas especialmente sensíveis conseguem desenvolver essa defesa. Claro que, sendo pessoas sensíveis, não passam imunes e impunes pelas agruras do caminho. Mas mantêm, na essência, suas características intocadas. Falando sobre um pintor chamado Pascin, Ernest Hemingway disse o seguinte: "As sementes do que seremos um dia nascem conosco, mas sempre me pareceu que aqueles que não levam a vida totalmente a sério têm as sementes cobertas por um solo generoso e bem adubado".

Certas pessoas têm um lado maroto, arteiro, que acaba preservando sua capacidade de se assombrar sempre e sempre com as coisas da vida. Nada, nem as coisas mais graves e profundas e importantes, se torna totalmente solene para essas pessoas.

Certas pessoas trazem a curiosidade e a dúvida como fontes fecundas, parideiras. Nada na vida parece, para essas pessoas, totalmente conhecido, totalmente distante.

Certas pessoas vivem abertas para o mundo. Têm uma sede que o mundo não consegue saciar. Sempre querem algo, querem mais. Certas pessoas têm a receita, quase impossível de tão delicada, de conviver com uma memória carregada de nostalgia sem, em nenhum momento, perder o fascínio pelo presente e pela aventura do futuro. Há que inventar cuidados severos, evitar armadilhas traiçoeiras. Certas pessoas conseguem.

Pela vida afora, fui acumulando uma dívida com a vida: a serena certeza de ter tido a sorte de conviver, compartilhar a existência, sob um mesmo céu e um mesmo tempo, com certas pessoas que não fizeram outra coisa além de abrir meus olhos e engradecer meus dias. Certas pessoas que são uma espécie de dádiva, de cerimônias tão minhas, de encontro e reencontro comigo mesmo.

Certas pessoas que, mesmo à distância, diminuíram meu silêncio e iluminaram minha solidão. Poucas, valiosas, ternas pessoas."

(Eric Nepomuceno, para Chico Buarque)

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